Trauma complexo: porque negar a dor aumenta o sofrimento

Introdução Grande parte do sofrimento humano não nasce da dor em si mesma, mas da nossa tentativa consciente ou inconsciente, de a negar, fragmentar ou dissociar. No trauma complexo, esta negação transforma-se numa segunda ferida silenciosa, corrosiva e muitas vezes invisível. Quando afastamos a dor, afastamo-nos também das partes inteiras de nós mesmos. A negação pode parecer uma proteção, mas acaba por criar um vazio onde a dor continua viva, isolada e sem possibilidade de integração. Neste artigo, vamos explorar como o evitamento emocional prolonga o sofrimento e como, paradoxalmente, o acolhimento, inclusive do Psicólogo, pode ser o primeiro passo para uma cura real e duradoura.

TRAUMA

Sérgio Fonseca

8/11/20255 min read

O que é o trauma complexo?

O trauma complexo, também designado como Perturbação de Stress Pós-Traumático Complexo, resulta da exposição prolongada e repetida a experiências adversas, geralmente ocorridas na infância, quando ainda não havia recursos internos e externos para lidar com tais vivências.

Ao contrário do trauma “simples”, derivado de um único evento altamente impactante, o trauma complexo tem efeitos cumulativos e atinge várias áreas do funcionamento psicológico. Resulta de uma forma de violência característica de eventos traumáticos associados ao abuso emocional, físico e sexual, negligência emocional, e outras formas de violência íntima.

As suas marcas principais incluem: alterações emocionais persistentes (instabilidade, ansiedade crónica, depressão); dificuldades relacionais (medo de intimidade, padrões de desconfiança ou dependência); e alterações identitárias (sensação de vazio, incoerência narrativa, fragmentação do self). Estas alterações não resultam apenas do que aconteceu, mas também da forma como a mente e o corpo tiveram de se reorganizar para sobreviver ao contínuo impacto emocional negativo.

O diagnóstico de trauma complexo requer a presença de sintomas nos três seguintes domínios: Autoconceito Negativo (baixa autoestima, crenças negativas devido a experiências traumáticas e sentimentos de culpa e vergonha); Perturbação nos Relacionamentos (as relações baseiam-se na falta de habilidades para construir e manter relacionamentos sociais próximos); e Sintomas de Desregulação Afetiva (comportamento autolesivo, dissociação, passividade emocional, explosões de raiva, Irritabilidade, choro excessivo, anedonia).

A dinâmica da negação da dor

Negar a dor é um mecanismo de defesa adaptativo. Num contexto de ameaça, é muitas vezes a única forma de seguir em frente evitando sentir algo que, naquele momento, seria insuportável. Em relação ao ponto de vista neurobiológico, este evitamento está ligado à hiperativação da amígdala e à supressão funcional do córtex pré-frontal reduzindo, assim, a capacidade de processamento consciente da experiência.

No trauma complexo esta negação adquire um padrão crónico através da Minimização (“Não foi assim tão mau”); Dissociação (“Já nem penso nisso”); e do Bloqueio Verbal (“Prefiro não falar sobre isso”). Metaforicamente, é como cobrir uma ferida profunda com um pano macio e nunca a tratar. Por fora, parece protegida; por dentro, continua a infecionar durante a vida da pessoa.

Consequências da negação no trauma complexo

Quando a dor é sistematicamente negada, os sintomas não desaparecem apenas mudam de forma. Alguns efeitos comuns expressam-se na ansiedade e hipervigilância crónicas; sintomas depressivos e sensação de vazio; dificuldades em manter relações saudáveis; e somatizações (dores crónicas, problemas gastrointestinais, fadiga inexplicável).

Além disso, a identidade fica severamente comprometida porque partes da história pessoal permanecem inacessíveis, criando uma narrativa de vida fragmentada e incoerente. No contexto terapêutico esta dinâmica pode impedir que a pessoa avance, mantendo-a presa a um ciclo de evitamento, negação (por vezes, inconsciente) e sofrimento emocional e existencial.

O paradoxo da aceitação

Aceitar a dor não significa reviver o trauma nem ficar preso nele. A exposição segura, guiada por um terapeuta, permite ativar memórias dolorosas num contexto de regulação emocional, facilitando a reconsolidação da memória (processo neurobiológico que atualiza o significado de uma recordação).

Neste processo, o terapeuta atua como testemunha empática, permanecendo ao lado do paciente enquanto este se aproxima da sua dor. Esta presença segura cria espaço para que a emoção seja sentida, compreendida e integrada. Por exemplo, uma paciente que evitava falar da morte de um ente querido conseguiu, ao revisitar a memória com suporte, encontrar significado e reconstituir a narrativa, reduzindo a intensidade da dor e aumentando o sentido de continuidade.

Caminhos para integrar a dor

Integrar a dor é um processo gradual, que exige segurança, tempo e método. Algumas abordagens eficazes incluem: Terapia Narrativa: transformar memórias fragmentadas em histórias coerentes, usando metáforas e reconstrução narrativa; Terapia Focada nos Esquemas: trabalhar modos vulneráveis, acolhendo necessidades emocionais não satisfeitas; e Abordagens somáticas: grounding, respiração consciente, exploração sensorial para reconectar corpo e mente.

O autoconceito negativo é um aspeto central deste diagnóstico e é definido por crenças pessoais persistentes e diminuídas, derrotistas ou inúteis. Acompanhadas de sentimentos profundos e difusos de vergonha, culpa ou fracasso. Este tipo de crenças e esquemas podem tornar os indivíduos muito resistentes às intervenções cognitivo-comportamentais tradicionais, e tem sido argumentado que estes padrões de pensamento podem ser mais responsivos a intervenções focadas na compaixão. O mais importante é que a pessoa não percorra este caminho sozinha. A presença terapêutica é o fator que permite tocar na dor sem se perder nela.

Conclusão

Negar a dor é, quase sempre, um reflexo de sobrevivência. É a mente a dizer: “Não olhes agora, é demasiado para ti”. E, quando a ameaça é real, esse mecanismo pode salvar vidas. Mas quando essa negação se transforma num hábito crónico, aquilo que antes foi proteção passa a ser prisão. A dor não desaparece, fica apenas soterrada, fragmentada, infiltrando-se de forma silenciosa nas emoções, no corpo e nas relações. Continuamos a viver, mas nunca plenamente; sobrevivemos, mas não inteiros.

No trauma complexo, esta dinâmica é particularmente intensa: partes da identidade ficam isoladas, sem contacto com o presente, enquanto outras lutam para funcionar. Este afastamento interno cria um vazio que se enche de sintomas — ansiedade persistente, tristeza profunda, desconfiança, dificuldade em sentir ligação segura aos outros. E é aqui que a negação deixa de ser um escudo e se torna uma barreira ativa contra a cura.

Aceitar a dor não significa reviver o passado nem mergulhar no sofrimento sem rumo. Significa aproximar-se, de forma gradual e segura, das experiências que moldaram a nossa história, reconhecê-las e dar-lhes um lugar na narrativa da vida. Significa transformar memórias de algo que aconteceu para algo que foi integrado. É este processo que devolve coerência à identidade, liberdade emocional e possibilidade real de mudança.

Atravessar este caminho sozinho é árduo e, muitas vezes, impossível. É por isso que o encontro com um terapeuta preparado, alguém que saiba estar presente, sem pressa, mas também sem recuar, é fulcral. A minha forma de trabalhar com estes casos nasce precisamente d compromisso de caminhar consigo, lado a lado, no território da sua dor, até que ela deixe de ser um peso solitário e se torne parte da sua força.

Se reconhece que tem evitado a sua dor, ou se percebe que determinadas partes de si ficaram congeladas no tempo, talvez este seja o momento de começar a travessia. Não para o afogar no passado, mas para resgatar as partes de si que ainda esperam ser ouvidas e viver, finalmente, sem carregar o peso que não lhe é exclusivo.

* Se procura acompanhamento psicológico especializado em trauma, depressão, ideação suicida, luto ou perturbações da personalidade, pode agendar consulta comigo ou com a minha equipa clínica. Todas as intervenções seguem o mesmo modelo clínico avançado, integrando neurociência, psicanálise relacional, terapia focada nos esquemas e terapia narrativa, com a minha supervisão contínua.