Terapia Narrativa: transformar memórias em histórias libertadoras

A memória de quem viveu trauma não se apresenta como um livro bem encadernado, com capítulos claros e sequência lógica. Pelo contrário, é um arquivo fragmentado, cheio de páginas soltas, rasgadas, repetições e silêncios. Para o paciente, esta experiência traduz-se numa história interna confusa, marcada por cenas avulsas que regressam sem contexto, como se o passado não tivesse ficado para trás. Para o psicólogo, o desafio está em ajudar a transformar estes fragmentos num fio narrativo coerente, sem forçar linearidade nem desvalorizar as fissuras que fazem parte da verdade de quem viveu dor. É neste espaço que a Terapia Narrativa se torna uma ferramenta profundamente transformadora.

Sérgio Fonseca

9/11/20254 min read

Muitos pacientes descrevem que sentem a sua vida como uma sucessão de acontecimentos desconexos: lembram-se de momentos dolorosos, mas não conseguem ligá-los numa narrativa contínua; sentem emoções intensas, mas não conseguem explicar a origem; vivem com uma sensação difusa de vergonha ou culpa, mas sem clareza sobre como ela foi construída. Esta fragmentação não é um defeito de carácter, mas consequência direta de memórias traumáticas que foram registadas fora do circuito normal de integração mais perto do corpo e da emoção bruta do que da memória biográfica organizada. O resultado é que a identidade se constrói em torno de buracos, e não de narrativas.

Para o psicólogo, compreender isto é fundamental! A Terapia Narrativa não é apenas uma técnica, é uma postura clínica que reconhece o poder das histórias na construção do self. Narrar não é só contar o que aconteceu, é dar-lhe sentido, reorganizar a sua posição na vida da pessoa, decidir qual o lugar que essa experiência terá no presente e no futuro. Mas, no trauma, o que foi vivido não encontra palavras, ou encontra palavras demasiado cruas. Daí a importância de criar um espaço seguro onde, gradualmente, a dor possa ser narrada de modo a libertar, e não a aprisionar.

É comum que, no início do processo, o paciente diga: “Não sei por onde começar”. Esse “não sei” não é falta de vontade, mas reflexo da descontinuidade interna. O psicólogo que insiste na linearidade pode levar o paciente a sentir-se ainda mais inadequado. O caminho, ao contrário, é legitimar os fragmentos e acolhê-los como pedaços de história que ainda não se uniram. A Terapia Narrativa oferece as ferramentas para isso: externalizar o problema, trabalhar as metáforas, criar a distância suficiente para que a memória deixe de ser vivida como um presente esmagador e possa ser reconfigurada como um passado integrado.

Do lado do paciente, esta abordagem é muitas vezes sentida como libertadora. Ao falar de si através de metáforas, histórias alternativas ou narrativas reescritas, ele consegue olhar para as experiências de forma menos ameaçadora. Em vez de dizer “eu sou o trauma”, aprende a dizer “eu vivi o trauma” e essa diferença subtil, mas radical, abre espaço para o futuro. Muitos descrevem que, pela primeira vez, conseguem contar a sua história sem se perderem nela, sem ficarem dominados pela emoção ou pela sensação de vazio.

Do lado do psicólogo, a Terapia Narrativa exige sensibilidade e rigor. Não se trata de embelezar a história nem de forçar significados positivos. A tarefa é criar um enquadramento em que o paciente encontre as suas próprias palavras, construa as suas próprias ligações e decida o que significa continuar a viver depois do trauma. É uma escuta ativa, mas também uma escuta criativa, em que o terapeuta ajuda a tecer ligações entre os fragmentos, sem impor um guião pré-definido.

É também importante reconhecer que a Terapia Narrativa não elimina a dor. A memória traumática continuará a existir, mas já não como intrusão constante: passa a ser um capítulo com lugar específico, já não um fantasma que irrompe a qualquer momento. A narrativa construída não apaga o passado, mas transforma a sua relação com ele. E isso é, muitas vezes, o que distingue sobrevivência de vida.

No trabalho com trauma complexo e borderline, esta abordagem tem um valor acrescentado. Os pacientes com perturbação borderline, por exemplo, relatam frequentemente histórias identitárias incoerentes: hoje sentem-se de uma forma, amanhã de outra, e não encontram fio condutor. A narrativa oferece um mapa de continuidade, mesmo que cheio de ruturas, onde a identidade pode estabilizar-se. Já no trauma complexo, marcado por experiências repetidas de abandono, negligência ou abuso, a Terapia Narrativa dá ao paciente a possibilidade de recuperar a sua voz, de deixar de ser personagem secundária na história de violência sofrida e de se tornar protagonista da própria vida.

Clinicamente, isto implica uma inversão radical: em vez de se focar apenas no que aconteceu, a terapia foca-se em contar o que aconteceu e que lugar dar a essa história daqui para a frente. Para o paciente, isto significa não estar condenado a repetir indefinidamente os ecos do trauma, mas ter a oportunidade de o ressignificar. Para o psicólogo, significa praticar uma clínica que não se reduz a gerir sintomas, mas que se atreve a trabalhar no campo mais íntimo e transformador da identidade: a narrativa de vida.

A Terapia Narrativa não é uma técnica mágica. É um processo que exige tempo, paciência, contenção e criatividade. Mas os seus efeitos são poderosos. Quando o paciente descobre que consegue narrar o trauma sem ser engolido por ele, algo muda no núcleo do self: o passado deixa de ser prisão e começa a ser história. Essa transformação é, em si mesma, um ato de cura.

Para quem sofre, é a possibilidade de dizer: “o trauma aconteceu, mas já não me define”. Para o psicólogo, é testemunhar a força que emerge quando a dor encontra palavras e se torna narrativa. E para ambos, é a certeza de que contar a história, quando feito em segurança e com presença terapêutica, não é repetir o trauma, é libertar-se dele. A história do paciente não se resume ao que lhe aconteceu. Ela também se constrói a partir da forma como é contada, e ele pode encontrar um modo de narrar que devolva dignidade e sentido. Por outro lado, o psicólogo não deve procurar apenas memórias, mas sim procurar narrativas. É na forma como a história é contada, e não apenas no seu conteúdo, que reside o processo de cura.

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