Perturbação Borderline: estratégias terapêuticas para a mudança profunda e sustentada

A Perturbação da Personalidade Borderline (PPB) é uma das condições mais mal compreendidas e estigmatizadas na clínica psicológica e psiquiátrica. Durante anos foi vista como “incurável” ou “sem solução”, o que não só é cientificamente falso, como clinicamente prejudicial. Esta crença alimenta a desistência precoce de intervenções, fragiliza a esperança do paciente e reduz o investimento dos terapeutas em modelos consistentes de tratamento. Para compreender a PPB e tratá-la com eficácia, é preciso reconhecer uma realidade incontornável: a maioria das pessoas borderline é também uma pessoa com trauma complexo. Isto significa que os sintomas nucleares da perturbação não podem ser dissociados da história prolongada de exposição a adversidade, negligência ou abuso, geralmente no período formativo do desenvolvimento. Sem entender esta dinâmica causa-efeito, nomeadamente como o trauma molda esquemas nucleares, padrões relacionais e reatividade emocional, qualquer tentativa de intervenção será superficial e com baixo potencial de sustentação no tempo.

BORDERLINE

8/11/20254 min read

Trauma complexo como matriz do funcionamento borderline

O trauma complexo, tal como definido pela CID-11, resulta de exposição prolongada a eventos ou contextos ameaçadores (abuso, negligência crónica, violência doméstica, separações afetivas prolongadas) em fases precoces e sem possibilidade de fuga ou proteção. Este tipo de trauma não produz apenas memórias dolorosas, altera a própria arquitetura neuropsicológica da pessoa, afetando:

  • Regulação emocional: maior vulnerabilidade a estados de hiperativação (raiva, medo) e hipoativação (entorpecimento, vazio).

  • Representações internas de si e dos outros: crenças profundas de não ser digno de amor, medo de abandono, desconfiança estrutural.

  • Integração narrativa e identitária: dificuldade em criar um sentido coerente da própria vida.

Na PPB, os efeitos do trauma complexo estão na base da instabilidade relacional, da oscilação entre idealização e rejeição, da impulsividade reativa e da sensação persistente de vazio. Portanto, tratar borderline implica inevitavelmente trabalhar trauma complexo, não como um “tema paralelo”, mas como elemento central do plano terapêutico.

Terapia Focada nos Esquemas como eixo central

A Terapia Focada nos Esquemas é, atualmente, uma das abordagens mais eficazes e sustentadas para PPB com trauma complexo, precisamente porque:

  • Mapeia esquemas nucleares como abandono, desconfiança/abuso, defetividade, privação emocional, os quais nasceram e foram reforçados pelas experiências traumáticas.

  • Identifica modos desadaptativos (vulnerável, protetor desligado, punitivo, zangado) e intervém diretamente sobre eles.

  • Usa a reparentalização limitada para criar experiências emocionais corretivas que contrastam com o ambiente invalidante original.

  • O trabalho experiencial da TFE é crucial para regravar memórias emocionais e instalar novas respostas internas, reduzindo a força dos padrões automáticos herdados do trauma.

Integração com a Terapia Narrativa e a regulação somática

Embora a TFE seja o núcleo estruturante, podemos integrar elementos da Terapia Narrativa. Porque proporciona uma ajuda na reorganização da história pessoal de forma coerente e sem a carga fragmentadora das memórias traumáticas. Também a regulação somática utiliza técnicas de grounding e respiração que modulam o sistema nervoso autónomo, reduzindo a vulnerabilidade à reatividade.

Isto é particularmente importante no borderline com trauma complexo, pois o corpo “guarda” as respostas defensivas desenvolvidas no passado, e estas influenciam diretamente a intensidade e duração das crises emocionais.

O mito do borderline “sem cura”

O estigma do borderline como “irrecuperável” vem de uma era pré-modelos especializados, quando as intervenções eram genéricas, centradas apenas em sintomas superficiais, e não se reconhecia a ligação com trauma complexo. Os tratamentos eram interrompidos antes de criar mudanças estruturais.

Estudos atuais demonstram que cerca 50% a 70% dos pacientes alcançam remissão sustentada com tratamento adequado e continuado. A integração de trabalho com trauma complexo aumenta significativamente a durabilidade dos ganhos. A taxa de recaída diminui quando o paciente adquire competências para identificar e regular os seus modos desadaptativos antes de estes dominarem o comportamento.

O verdadeiro obstáculo não é a “incurabilidade” da PPB, mas a falta de um enquadramento clínico que una competência técnica, estabilidade relacional e compreensão do impacto do trauma complexo.

Novas diretrizes internacionais: alinhamento com a prática clínica avançada

Em dezembro de 2024, a American Psychiatric Association (APA) publicou a atualização das Practice Guidelines para a Perturbação de Personalidade Borderline, reforçando princípios que convergem com a abordagem clínica que defendo. A avaliação inicial deve ser abrangente e centrada na pessoa, incluindo história desenvolvimental, padrões relacionais, comorbidades e avaliação rigorosa de risco. É recomendada a utilização de instrumentos quantitativos para monitorizar sintomas e funcionalidade, permitindo ajustar o plano terapêutico de forma colaborativa e mensurável.

As diretrizes colocam a psicoterapia estruturada, como a Terapia Focada nos Esquemas, como núcleo do tratamento. A farmacoterapia não deve ser utilizada como intervenção primária para os sintomas nucleares da PPB. Quando prescrita, deve ser direcionada a sintomas específicos e mensuráveis (p. ex., impulsividade grave, sintomas psicóticos transitórios, agitação intensa); limitada no tempo, com revisão periódica da necessidade (idealmente a cada 6 meses); e complementar à intervenção psicoterapêutica.

Relativamente aos antipsicóticos, a APA recomenda a sua prescrição apenas em situações de curta duração e como medida adjuvante, principalmente para contenção de sintomas psicóticos breves ou desorganização grave. A utilização prolongada deve ser evitada, salvo em casos muito específicos e devidamente monitorizados, devido ao risco de efeitos adversos e à ausência de evidência robusta para benefício sustentado nos sintomas centrais da PPB.

Outro ponto central é a deteção precoce, sobretudo em adolescentes e jovens adultos, com a psicoeducação para reduzir o estigma e aumentar a adesão ao tratamento. A orientação é inequívoca: o objetivo não é apenas reduzir sintomas, mas melhorar a funcionalidade, a qualidade de vida e a capacidade de manter relações estáveis.

Estas recomendações oficiais validam e reforçam a visão clínica integrada que reconhece a PPB como tratável quando abordada com método, profundidade e compromisso terapêutico sustentado.

Conclusão

Intervir terapeuticamente na Perturbação de Personalidade Borderline é intervir no trauma complexo. O borderline não é um “caso perdido” nem um território proibido para a mudança. É uma condição profundamente ligada a histórias de trauma complexo, que exige abordagem dupla. E esta abordagem é descrita pela convergência do trabalho profundo de esquemas e modos, para reorganizar padrões internos e consolidar uma identidade mais estável, e a integração gradual de memórias traumáticas, em ambiente seguro, para reduzir a carga emocional que alimenta a instabilidade.

O sucesso terapêutico nasce quando o terapeuta entende que não existe um borderline “puro” sem trauma e que ignorar esta relação é abdicar de intervir na raiz do problema. Intervir numa pessoa borderline é oferecer-lhe a possibilidade de construir novas memórias emocionais, aprender formas seguras de estar em relação e adquirir autonomia emocional que antes parecia impossível.

O mito da “incurabilidade” cai por terra diante dos casos em que, com tempo, método e presença terapêutica estável, a pessoa reconstrói a sua vida, cria relações mais saudáveis e passa de sobrevivente a protagonista da própria história. Essa mudança não é fruto de esperança ingénua, mas sim resultado de ciência, estratégia e compromisso clínico genuíno.

* Se procura acompanhamento psicológico especializado em trauma, depressão, ideação suicida, luto ou perturbações da personalidade, pode agendar consulta comigo ou com a minha equipa clínica. Todas as intervenções seguem o mesmo modelo clínico avançado, integrando neurociência, psicanálise relacional, terapia focada nos esquemas e terapia narrativa, com a minha supervisão contínua.