O Abandono: quando a ausência molda o corpo, a mente e as relações

O abandono é, simultaneamente, um evento e uma experiência subjetiva. Pode ser um acontecimento objetivo como a separação física de uma figura de vinculação ou uma perceção interna de que não se é visto, ouvido ou emocionalmente protegido. Na psicologia do trauma complexo e das perturbações da personalidade, o abandono não é apenas uma ferida emocional. É um molde que estrutura a forma como a pessoa pensa, sente, reage e se relaciona. Compreender o abandono em profundidade é essencial para diferenciar dinâmicas psicopatológicas, planear intervenções e evitar confusões de diagnóstico. Entre estas, destaca-se a distinção entre o abandono vivido pela personalidade borderline e pela personalidade dependente. Fenómenos que partilham pontos de contacto, mas que têm matrizes, motivações e consequências distintas.

TRAUMA

8/11/20254 min read

Na Psicologia, falar de abandono implica adotar uma perspetiva longitudinal no processo terapêutico. Significa que o abandono é, simultâneamente causa e consequência, na existência da pessoa e condicionador da assunção da verdadeira identidade individual. Assim, convém dissecar o abandono em si mesmo e não ficarmos apenas por uma definição lexical perigosamente generalista. O abandono, enquanto esquema desadaptativo merece uma análise profundamente meticulosa para poder ser possível delinear uma intervenção cuidada, articulada e direcionada ao superior interesse da pessoa. Para isso, tenhamos em conta os diferentes tipos de abandono:

  • Abandono objetivo: corresponde a uma rutura factual na relação com a figura de vinculação primária, como a separação física, falecimento, institucionalização ou ausência prolongada sem substituto afetivo consistente (ex: uma criança que vê o progenitor partir por meses sem contacto significativo).

  • Abandono subjetivo: ocorre quando a figura de vinculação está fisicamente presente, mas emocionalmente inacessível. Pode resultar de depressão parental, consumo de substâncias, envolvimento excessivo com trabalho ou relações, ou incapacidade de responder às necessidades afetivas da criança (ex: uma criança que, embora viva com os pais, sente-se invisível ou emocionalmente ignorada).

  • Abandono vinculativo: relacionado com vínculos inseguros, inconsistentes ou instáveis, em que a proximidade emocional é intermitente e imprevisível (ex: um cuidador que alterna entre afeto intenso e retraimento emocional, criando padrões de aproximação-evitamento).

Abandono funcional: surge quando a figura de vinculação delega responsabilidades ou expõe a criança a situações para as quais ela não tem maturidade emocional ou cognitiva, deixando-a sem suporte para desempenhar funções de autorregulação (ex: crianças que assumem papéis parentais precocemente).

Abandono na personalidade borderline vs. personalidade dependente

Embora o abandono seja um esquema central em ambas as perturbações, a dinâmica interna é distinta. Na personalidade borderline o abandono é vivido com hiper-reactividade emocional e medo extremo de rejeição. A perceção de ameaça ao vínculo desencadeia respostas intensas e, por vezes, impulsivas (protesto, raiva, imploração ou autoagressão). Sob o ponto de vista neurobiológico, há uma hiperativação da amígdala e uma menor modulação pré-frontal, resultando em respostas rápidas, intensas e de difícil regulação.

Clinicamente, é comum que a antecipação do abandono seja tão dolorosa que leve a comportamentos paradoxais que o precipitam, como testar limites ou afastar antes de ser afastado. Por outro lado, na personalidade dependente o abandono é vivido com um medo ansioso e submissão relacional. A resposta típica é o aumento de comportamentos de apaziguamento e adesão para garantir a continuidade do vínculo. Sob o ponto de visto neurobiológico, existe uma maior ativação das redes de vinculação ansiosa, com prevalência de estratégias de acomodação e supressão de necessidades próprias. A pessoa dependente raramente reage com protesto aberto e tende antes a reforçar a passividade para evitar o afastamento.

Como síntese diferencial podemos afirmar que no borderline, o abandono ativa o protesto e a turbulência emocional; no dependente, ativa a submissão e a anulação de si. Em ambos, o medo é intenso, mas a estratégia relacional é oposta.

Impactos neurobiológicos e relacionais do abandono

O abandono precoce, especialmente quando repetido, afeta a maturação de circuitos cerebrais responsáveis pela regulação emocional, vinculação segura e integração narrativa. Entre os impactos mais estudados destacam-se a hiperativação límbica e dificuldade de modulação pré-frontal; o aumento da sensibilidade a sinais de rejeição e leitura enviesada de interações ambíguas como ameaçadoras; e os padrões relacionais instáveis caracterizados pela oscilação entre a fusão e o afastamento (borderline) ou ligação submissa e dependente (dependente).

Na vida adulta, estes padrões traduzem-se em relações marcadas por medo, insegurança e estratégias defensivas que, paradoxalmente, dificultam a estabilidade que se procura.

Implicações terapêuticas

O tratamento do abandono enquanto esquema exige mais do que compreensão cognitiva. É necessário um processo experiencial corretivo, que permita viver, dentro da relação terapêutica, as experiências de vínculo seguro e consistente.

Na Terapia Focada nos Esquemas aplicada à Perturbação Borderline trabalha-se a tolerância à ausência e ao afastamento temporário, a gestão do medo de rejeição e a substituição de comportamentos impulsivos por estratégias de autorregulação. A reparentalização limitada é usada para oferecer previsibilidade e estabilidade que faltaram na infância. Por outro lado, quando este modelo terapêutico é aplicado na Perturbação Dependente, o foco está em fortalecer a autonomia, incentivar a tomada de decisões próprias e desenvolver tolerância à autoafirmação sem medo da perda relacional. A reparentalização limitada visa validar necessidades, mas também reforçar a autoeficácia.

Nos dois casos, a terapia deve considerar o reconhecimento da origem traumática do esquema; a construção gradual de competências de vinculação segura; e a integração narrativa para que a história do abandono deixe de estar presente eternamente.

Conclusão

O abandono não é apenas um episódio de perda. É uma matriz de significado que influencia todo o funcionamento psicológico. Na personalidade borderline, manifesta-se como uma tempestade emocional e protesto relacional; na personalidade dependente, como apaziguamento e anulação do self. Em ambos, o medo da solidão e da perda condiciona as escolhas, perceções e os vínculos.

Ignorar a diferença entre estas dinâmicas é perder a precisão diagnóstica e comprometer a eficácia terapêutica. Ao reconhecer as múltiplas faces do abandono (objetivo, subjetivo, vinculativo e funcional), o terapeuta ganha ferramentas para intervir no núcleo da perturbação, promovendo não apenas alívio sintomático, mas a mudança estrutural.

No trabalho com trauma complexo, compreender e intervir no abandono não é opcional. É o ponto de viragem que permite ao paciente deixar de viver preso ao medo e começar a construir relações baseadas em segurança, previsibilidade e reciprocidade. Esse é o passo que transforma sobrevivência em vida e é aqui que a verdadeira terapia acontece.

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