Memória traumática: como o corpo guarda o que a mente tenta esquecer
A memória traumática é um dos fenómenos mais mal compreendidos na clínica e na sociedade. Não é uma memória “normal” gravada no arquivo da nossa história pessoal, nem se comporta como a memória biográfica de eventos significativos. Ao contrário do que acontece com memórias de longo prazo, que são contextualizadas, integradas e narráveis, a memória traumática mantém-se fragmentada, sensorial, descontextualizada e, frequentemente, fora do controlo voluntário. Este tipo de memória não está “guardado” onde costumamos guardar as recordações. Está preso em redes de sobrevivência, pronto a ser reativado sempre que o organismo perceciona perigo, mesmo que esse perigo já não exista. Compreender esta diferença é essencial para o diagnóstico, para a intervenção terapêutica segura e para evitar interpretações erradas, tanto em contexto clínico como legal.
TRAUMA
Sérgio Fonseca
8/27/20253 min read


O que é (e o que não é) memória traumática?
Não é memória de longo prazo!
A memória de longo prazo envolve consolidação hipocampal, integração cortical e acesso narrativo. A memória traumática não passa por este processo de forma completa. O hipocampo fica comprometido pela hiperativação da amígdala e pela descarga massiva de hormonas do stress (cortisol, catecolaminas).
Não é memória biográfica!
A memória biográfica integra factos, contexto temporal e significado. A memória traumática é desprovida de narrativa. São imagens, sensações corporais, sons, cheiros, emoções intensas que emergem como se o evento estivesse a acontecer agora.
Neurobiologia da memória traumática
Durante um evento traumático a amígdala entra em hiperativação, registando a ameaça com elevada carga emocional. O hipocampo perde eficiência na codificação temporal e contextual, fragmentando a memória. O córtex pré-frontal reduz a sua atividade reguladora, prejudicando a avaliação racional da experiência. As redes somatossensoriais (córtex somatossensorial, ínsula) gravam sensações físicas e estados corporais de sobrevivência.
O resultado é um “pacote” de memórias que não se insere na linha temporal normal quando reativado, o corpo e a mente respondem como se fosse presente. Este fenómeno explica porque é que gatilhos aparentemente banais podem desencadear reações de pânico, congelamento ou raiva extrema.
Como se manifesta a memória traumática?
Intrusões sensoriais: imagens súbitas, cheiros, sons, sensações táteis; Flashbacks: reviver a experiência com perda parcial de orientação para o presente; Respostas corporais automáticas: aumento da frequência cardíaca, tensão muscular, alteração da respiração; Fragmentação narrativa: incapacidade de contar a história de forma coerente ou completa.
Estas manifestações não são voluntárias nem sinal de “fraqueza psicológica” — são o resultado de um sistema de sobrevivência a funcionar exatamente como foi programado durante a ameaça.
Trauma complexo: quando a memória traumática se torna padrão
No trauma complexo, resultante de exposição prolongada a abuso, negligência ou violência, a memória traumática deixa de ser exceção e passa a moldar o funcionamento diário. O organismo vive em hipervigilância crónica, e as redes de sobrevivência são ativadas com frequência, mesmo em contextos neutros.
A terapia aqui não pode focar-se apenas em “recordar” ou “falar sobre” o trauma é necessário integrar gradualmente as memórias, restaurando a ligação entre emoção, corpo e narrativa.
O erro clínico de tratar memória traumática como memória normal
Muitos erros terapêuticos nascem da suposição de que a memória traumática pode ser acedida e reorganizada da mesma forma que outras memórias. Na memória normal, a evocação fortalece a integração. Na memória traumática, a evocação sem regulação prévia pode reforçar a fragmentação e aumentar a reatividade. O trabalho exige um ritmo específico, respeitando a janela de tolerância do paciente, alternando aproximação e estabilização, e usando estratégias de ancoragem somática.
Conclusão - ciência, precisão e segurança clínica
A memória traumática não é um defeito, é uma adaptação e uma forma como o cérebro e o corpo se protegeram perante ameaça extrema. Confundi-la com memória de longo prazo ou biográfica é ignorar a sua natureza neurofisiológica e relacional, e pode levar a abordagens que retraumatizam em vez de curar.
Para intervir com sucesso, o clínico precisa de compreender a base neurobiológica que mantém a memória traumática ativa; respeitar o tempo e o ritmo de integração, evitando exposição precoce; integrar corpo e narrativa, para que a memória deixe de ser presente eterno e se torne passado integrado.
A memória traumática não se “apaga”, transforma-se. E essa transformação acontece quando o terapeuta sabe criar condições para que a experiência deixe de ser um gatilho e passe a ser apenas uma parte da história de vida, agora narrável, contextualizada e emocionalmente regulada. No trabalho com trauma complexo, este conhecimento não é opcional é a fronteira entre a cura e a perpetuação do sofrimento.
* Se procura acompanhamento psicológico especializado em trauma, depressão, ideação suicida, luto ou perturbações da personalidade, pode agendar consulta comigo ou com a minha equipa clínica. Todas as intervenções seguem o mesmo modelo clínico avançado, integrando neurociência, psicanálise relacional, terapia focada nos esquemas e terapia narrativa, com a minha supervisão contínua.