Dissociação Estrutural vs. PHDA: o erro clinicamente negligente
A confusão entre dissociação estrutural (típica da traumatização crónica) e PHDA (perturbação do neurodesenvolvimento) nasce de semelhanças superficiais: distração, variabilidade de desempenho, “perda da noção de tempo” e impulsividade aparente. Sem um enquadramento sólido, estes sintomas são precipitadamente diagnosticados como PHDA, ignorando mudanças de estado, amnésias lacunares e gatilhos próprios da dissociação. O resultado é a negligência diagnóstica fazendo com que a pessoa não receba estabilização traumática, expondo-a a intervenções iatrogénicas e mantendo a fragmentação interna. A solução é distinguir fenomenologia, curso desenvolvimental e neurobiologia de cada quadro diagnóstico com precisão.
8/14/20256 min read


O que é dissociação estrutural?
O conceito de dissociação estrutural da personalidade foi desenvolvido por autores como Onno van der Hart, Ellert Nijenhuis e Kathy Steele. Esta abordagem teórica propõe que a dissociação é uma divisão estrutural da personalidade em diferentes partes, em resposta ao trauma.
A teoria da dissociação estrutural da personalidade descreve uma organização estável em partes com funções distintas: as Partes Aparentemente Normais (PAN), voltada para o quotidiano e evitante do material traumático, e as Partes Emocionais (PE), que contém as memórias, afetos e respostas defensivas associadas à experiência traumática. Não é “teatralização”; é uma solução neuropsicológica de sobrevivência quando a integração plena é insuportável. A consequência clínica central é de estado‑dependência: atenção, memória, afeto e comportamento mudam com a ativação de determinadas partes, frequentemente por gatilhos internos/externos, e podem surgir amnésias parciais e quebras de continuidade identitária.
De acordo com a teoria da dissociação estrutural, o trauma grave, especialmente quando ocorre precocemente na vida, impede a integração dessas partes, resultando numa estrutura de personalidade dividida. É uma divisão na personalidade, mas não significa que a pessoa tenha psicose ou sofra de esquizofrenia. A pessoa tem consciência de quem é, mas sente-se completamente diferente a cada momento por dentro. A parte da personalidade impulsionada pela prioridade da vida diária, a Parte Aparentemente Normal, e as partes impulsionadas pelo trauma como Parte Emocional (traumatizada).
Geralmente, existem mais de duas subpersonalidades. Quanto mais grave fôr o trauma, mais complexa é a divisão do trauma infantil e mais “separadas” estas partes parecem. Pode criar fobias que irão manifestar-se ao longo da vida, de modo a viver uma vida projetada para evitar as memórias traumáticas. Os sintomas pioram à medida que a pessoa associa mentalmente mais e mais “pistas” ao trauma (sons, pessoas, certas coisas que outras pessoas dizem, lugares). O passado é excluído como forma de sobreviver, mas ocasionalmente o trauma surge provocando uma “inundação” de medo e dor.
O que é PHDA?
A PHDA é uma perturbação do neurodesenvolvimento com início na infância. Os critérios DSM assentam em sintomas persistentes ≥6 meses, inadequados ao nível desenvolvimental, presentes em dois ou mais contextos e com prejuízo clinicamente significativo; exige‑se história de sintomas antes dos 12 anos (em adultos, documentada retrospetivamente e por múltiplos informantes sempre que possível). A desatenção, na PHDA, é traço pervasivo, não dependente de gatilhos emocionais específicos, e não envolve amnésia lacunar de eventos.
Fenomenologia distinta
Atenção: traço pervasivo vs flutuação estado‑dependente
PHDA: distrabilidade tónica e multicontextual (casa, escola/trabalho, relações), com história desde a infância e sem relação sistemática com memórias traumáticas.
Dissociação Estrutural: lapsos fásicos, muitas vezes precedidos por gatilhos (sensações, contextos relacionais, conteúdos narrativos). O terapeuta observa “entradas/saídas” abruptas, “ficar longe”, micro alterações de voz, postura, acesso a memória e afeto.
Memória e continuidade do self
PHDA: esquecimentos por desorganização executiva; a pessoa não regista/conclui, mas recorda o contexto quando questionada; não há lacunas autobiográficas extensas.
Dissociação Estrutural: amnésias lacunares (blocos de conversa/tempo/percursos), alternância de perspetivas (“eu/ela/nós”) e quebras de continuidade identitária; frequentemente, o paciente “descobre” tarefas feitas sem recordar o processo.
Curso evolutivo e contexto de aparecimento
PHDA: início antes dos 12 anos, padrão estável ao longo da vida, comprovado em múltiplos contextos. “PHDA de início adulto” é uma exceção extrema e geralmente explica‑se por outra psicopatologia ou erro de recordação.
Dissociação Estrutural: frequentemente emerge/agrava com a traumatização crónica (abuso, negligência, violência), especialmente quando a adversidade é precoce e relacional. A sintomatologia flutua com o stress e a intimidade.
Linguagem, narrativa e comunicação em consulta
PHDA: discurso por vezes tangencial/desorganizado, mas coeso na identidade; não há “mudanças de parte” com alterações marcadas de registo.
Dissociação Estrutural: mudanças súbitas de tom, afeto, léxico e acesso a memória; narração fragmentada, saltos temporais, encapsulamento de memórias (o corpo “lembra” quando a mente evita).
Psicofisiologia e redes cerebrais
PHDA: alterações frontoestriatais e catecolaminérgicas, implicando inibição/controlo e regulação atencional.
Dissociação Estrutural: perturbações nas redes de modo padrão, saliência e executivo central, com hiper-reatividade do sistema de ameaça e padrões de desconexão ou hiperativação conforme o estado. Estes perfis explicam a oscilação estado‑dependente e a fragmentação narrativa.
Porque é que a confusão é tão comum (e perigosa)?
A sobreposição superficial dos sintomas (desatenção, inquietação, impulsividade, variabilidade) leva a atalhos cognitivos: se “parece PHDA”, diagnostica‑se PHDA. Mas o contexto etiológico e o padrão temporal são diferentes. A literatura em trauma infantil destaca que o stress traumático pode mimetizar PHDA, e alerta para diagnósticos precipitados quando não se explora história de adversidade, gatilhos e quebras de continuidade. Nos adultos, a narrativa de “sempre fui distraído” pode mascarar desenvolvimentos tardios ligados ao trauma. Tratar como PHDA um quadro primariamente dissociativo atrasará a estabilização emocional, reforçará o evitamento e quebrará a aliança ao interpretar estado‑dependência como “falta de vontade”.
Conclusão
A fronteira entre a Dissociação Estrutural e a PHDA não é ténue, apenas assim parece quando olhamos apenas para os sintomas. Ambas podem envolver desatenção, variabilidade de desempenho, impulsividade aparente ou dificuldade na manutenção do foco. Mas a origem, o padrão temporal e a dinâmica interna são radicalmente diferentes. E é essa diferença que, na prática clínica, salva anos de sofrimento ou o prolonga indefinidamente.
Na PHDA, a desatenção é um traço constante, presente desde a infância, manifestando-se em múltiplos contextos e não dependendo de eventos emocionais ou gatilhos específicos. O cérebro funciona sempre com um défice de regulação atencional e inibitória, independentemente do conteúdo que está a ser processado. Não há lacunas de memória autobiográfica, nem mudanças súbitas de identidade ou expressão que rompam a continuidade do self.
Na dissociação estrutural, a desatenção é episódica e gatilho-dependente, surgindo quando uma parte da personalidade assume o controlo para proteger o sistema psíquico de conteúdos dolorosos. Aqui, vemos amnésias lacunares, mudanças abruptas de afeto e postura, oscilações marcadas de competência, narrativa fragmentada e estados corporais que revelam defesa (hiperativação) ou desligamento (entorpecimento). É uma organização interna que nasceu do trauma e que só se mantém porque nunca encontrou as condições seguras para integrar as partes.
Confundir uma com a outra é mais do que um erro técnico, é negligência clínica. É negar à pessoa com dissociação o tratamento que realmente precisa, ou seja, estabilização, integração e trabalho seguro com as memórias traumáticas. É colocá-la num percurso terapêutico centrado apenas na produtividade, gestão de tempo ou medicação estimulante, que não tocam na raiz do problema e podem agravar a evitação.
Para evitar este desvio, o terapeuta precisa de se questionar se a desatenção é estável desde a infância ou aparece sobretudo em contextos emocionais específicos; se existem ou não lacunas de memória significativas e mudanças abruptas de estado; e o que acontece ao corpo e à narrativa quando a conversa se aproxima dos assuntos dolorosos.
Responder com honestidade e rigor a estas perguntas muda tudo. Permite que a pessoa receba o enquadramento certo, que o tratamento seja desenhado para a sua realidade interna, e que a confiança terapêutica se construa sobre o reconhecimento genuíno, e não sobre etiquetas imprecisas.
O papel do terapeuta aqui não é apenas identificar sintomas, mas compreender a lógica que lhes dá origem. É recusar atalhos e comprometer-se com uma avaliação cuidada, mesmo quando isso exige mais tempo e mais profundidade. Porque, no fim, o que está em jogo não é apenas um diagnóstico, mas sim a vida, a funcionalidade e a esperança de quem procura ajuda.
Se a desatenção é um traço constante desde cedo, a PHDA é a hipótese forte. Se é flutuante, marcada por gatilhos, acompanhada de amnésia e fragmentação identitária, a dissociação estrutural é o quadro mais provável. Reconhecer isso não é opcional, é ter responsabilidade ética. E é também a oportunidade de devolver ao paciente algo que talvez nunca tenha tido, especificamente, uma leitura verdadeira da sua história, que abre caminho para a cura real e sustentável no tempo.
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