5 erros comuns na abordagem de pacientes com trauma complexo

O trauma complexo é uma ferida que não se fecha sozinha. Ele molda a forma como a pessoa se percebe, como interpreta o mundo e como se relaciona com os outros. Para o paciente, significa viver preso a memórias que não parecem passado, mas que regressam como presenças invasivas, corporais e emocionais. Para o psicólogo, significa enfrentar uma clínica onde não existem atalhos: qualquer passo em falso pode ser vivido como nova negligência, nova rejeição ou novo abuso. É precisamente por isso que trabalhar com trauma complexo exige competência, rigor e humildade. Quando isso não acontece, os erros cometidos tornam-se mais do que falhas técnicas transformam-se em experiências iatrogénicas que agravam a dor que se pretendia aliviar.

TRAUMA

Sérgio Fonseca

9/3/20254 min read

O primeiro erro, talvez o mais frequente, é precipitar a exposição ao trauma. Muitos pacientes descrevem que foram empurrados a reviver recordações demasiado cedo, sem estarem preparados, como se a simples evocação fosse, em si, terapêutica. O que viveram, no entanto, foi a repetição da mesma experiência de desamparo que os marcou no passado: ficaram sozinhos com memórias intoleráveis, sem recursos internos para as sustentar. Do ponto de vista do terapeuta, esta precipitação nasce da crença equivocada de que o acesso direto à memória é a chave da cura. Mas na realidade, sem estabilização prévia, sem construção de segurança, o que acontece não é integração, mas retraumatização. O paciente sai mais fragmentado do que entrou, confirmando a sua sensação de que até na terapia a sua dor é “demasiado”.

Um segundo erro, não menos grave, é a minimização da dissociação. Muitos pacientes com trauma complexo relatam que foram olhados como distraídos, desmotivados ou resistentes, quando na verdade estavam em estados dissociativos. Perderam minutos da sessão sem se aperceber, sentiram o corpo desligar, perderam palavras ou a ligação à emoção, e foram interpretados como pouco colaborativos. Do ponto de vista do paciente, isto é devastador: mais uma vez, a sua forma de sobreviver é vista como defeito. Do ponto de vista do psicólogo, este erro acontece por falta de treino na leitura da dissociação, que não é sinal de desinteresse, mas de sobrevivência. Ignorá-la é perpetuar a invisibilidade do que o paciente carrega, reforçando a mesma incompreensão que já sofreu tantas vezes.

Outro equívoco frequente é acreditar que a empatia, por si só, é suficiente. É verdade que sem empatia não há cura, mas no trauma complexo a empatia sem direção pode tornar-se um espaço vazio. Muitos pacientes descrevem que se sentiram acolhidos, sim, mas também presos num ciclo onde falavam e choravam, sem nunca sair do mesmo lugar. O terapeuta que confia apenas na empatia corre o risco de se perder com o paciente, sem mapa nem destino, reforçando uma narrativa de estagnação. O que o paciente precisa não é apenas de alguém que compreenda a dor, mas de alguém que saiba como transformá-la em caminho, que seja simultaneamente presença calorosa e guia estruturado.

Há também o erro de ignorar o corpo. Para quem vive trauma complexo, as memórias não regressam apenas em palavras elas regressam em tremores, em falta de ar, em dores sem causa médica, em congelamento súbito. Muitos pacientes sentem que o corpo fala mais alto do que conseguem explicar, mas que nas sessões lhes pedem apenas narrativas verbais. A experiência é frustrante: a mente tenta traduzir, mas o corpo continua a carregar. Para o terapeuta, não reconhecer a dimensão corporal é reduzir a clínica do trauma a uma versão incompleta, como tentar tratar apenas a metade visível de uma ferida. Sem trabalhar a respiração, o grounding, a interocepção, não há possibilidade de devolver ao paciente a sensação de segurança interna que precisa para integrar as suas memórias.

Por fim, um erro subtil, mas com consequências profundas: desvalorizar as dinâmicas transferenciais e contratransferenciais. O paciente com trauma complexo não chega neutro à relação terapêutica chega com a história da sua vinculação falhada. É natural que idealize, desconfie, rejeite ou implore, tudo dentro da mesma sessão. Muitos descrevem que se sentiram novamente abandonados quando o terapeuta reagiu com distância ou defensividade.

Do lado do psicólogo, é fácil cair na armadilha de interpretar estas reações como ataques pessoais ou como sinais de que “não há nada a fazer”. O que aqui se joga, no entanto, é a possibilidade da relação terapêutica ser um espaço corretivo: não repetir o abandono; não desistir perante a raiva; não se afastar diante da dor, mas transformar esses momentos em matéria clínica. Quando o terapeuta reconhece a intensidade da transferência e sustenta a sua presença, oferece ao paciente algo que talvez nunca tenha experimentado: um vínculo resistente.

O que para o paciente são experiências de dor repetida, para o psicólogo são convites a aprofundar a sua competência e ética. Forçar a exposição, minimizar a dissociação, confiar apenas na empatia, ignorar o corpo e negligenciar a transferência são erros que não se corrigem com boas intenções corrigem-se com formação, supervisão e compromisso.

Para o paciente, evitar estes erros significa finalmente encontrar um espaço onde a sua dor não é demasiado, onde a sua forma de sobreviver é compreendida, onde a sua história é ouvida com rigor e respeito. Para o psicólogo, significa praticar uma clínica que honra a complexidade do trauma e que, em vez de repetir falhas antigas, cria uma possibilidade de futuro.

Tratar trauma complexo não é apagar memórias nem impor narrativas. É ajudar a pessoa a transformar o que foi prisão em história integrada, o que foi fragmento em continuidade, o que foi sobrevivência em vida plena. É este o desafio, e é também a promessa da psicoterapia quando feita com competência, presença e coragem.

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